Uma estória de amor

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VIOLINOS NÃO ENVELHECEM

Rubem Alves

Eu a escrevi faz muito tempo — uma estória de amor. Quem a leu, eu sei, não se esqueceu.
Por razão do dito pela Adélia: ” o que a memória ama fica eterno”. História de amor não inventada, acontecida, tão comovente quanto Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa. O que fiz foi só registrar o acontecido.
Preciso contá-la de novo, para benefício daqueles que não a leram pela primeira vez, e a fim de acrescentar um final novo, inesperado, acontecido depois.
A testemunha que me relatou o sucedido foi sobrinho, médico-músico, pessoa querida e bonita.
Atrasou-se para um compromisso na minha casa, chegou três horas depois, explicando que havia ido ao velório de um tio de 81 anos de idade que morrera de amor. Parece que seu velho corpo não suportara a intensidade da felicidade tardia, e os seus músculos não deram conta do jovem que, repentinamente, dele se apossara.
O amor surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência.
Mas naqueles tempos havia uma outra Aids, chamada tuberculose, que se comprazia em atacar as pessoas bonitas, os artistas, os apaixonados — esses eram os grupos de risco.
Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois, alojou-se nos pulmões do moço, que teve de ir em busca de ar puro, no alto das montanhas, sanatório, tal como Thomas Mann descreve em seu livro -A montanha mágica.
Quem ia para tais lugares despedia-se com um “adeus”, um olhar de “nunca mais”.
Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar antes do reencontro.
Imagino o sofrimento da jovem dividida: o corpo, naquela casa, a alma por longe terra!
Na vida daquela menina, que surda, perdida guerra… (Cecília Meireles).
Valeram mais os prudentes conselhos da mãe e do pai: não trocar o certo pelo duvidoso.
Vale mais um negociante vivo que um tuberculoso morto. E aconteceu com ela o que aconteceu com a Firmina Dazza, que de longe e às escondidas namorava o Fiorentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez Amor nos tempos do cólera, que foi obrigada pelo pai a se casar com o doutor Urbino: não se troca um médico por um escriturário. Casou e com ele ficou até que, depois de 51 anos, veio a libertação…
Ela casou. Ele casou. Nunca mais se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 anos (ele tinha 79), ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Foi procurá-lo. Encontraram-se. E, de repente, eram namorados adolescentes de novo.
Resolveram casar-se. Os filhos protestaram. Eles, os filhos, todos os filhos, não suportam a idéia de que os velhos também têm sexo. Especialmente os pais. Pais velhos devem ser fofos, devem saber contar estórias, devem tomar conta dos netos. Mas velho apaixonado é coisa ridícula. Não combina. Mais detalhes no livro da Simone de Beauvoir sobre a velhice. E houve também aquela estória do programa Você decide: o velho pai, infeliz a vida inteira com a esposa, encontra uma mulher por quem se apaixona.
A pergunta: ele deve ou não deve deixar a esposa para viver o novo amor? Você decide… A decisão do público — os filhos, evidentemente: “Não, ele não deve viver o novo amor…”
Os filhos sempre decidem contra o amor dos pais.
Mas, na nossa estória, os dois velhos deram uma solene banana para os filhos e foram viver juntos em Poços de Caldas. Viveram um ano de amor maravilhoso, e ele até começou a escrever poesia e voltou a tocar o violino que ficara por mais de 50 anos sobre um guarda roupa, porque a esposa não gostava de música de violino. Confessou ao sobrinho: “Se Deus me der dois anos de vida com esta mulher, minha vida terá valido a pena…” Bem que Deus quis. Mas o corpo não deixou. Morreu de amor, como temia o Vinícius.
Achei a estória tão bonita que a transformei numa crônica a que dei um título inspirado nas Sagradas
Escrituras: “… e os velhos se apaixonarão de novo”.
Começa aqui o novo final para a estória.
Passaram-se semanas. Eram dez horas. Eu estava trabalhando no meu escritório. O telefone tocou.
Voz aveludada de mulher do outro lado.
— É o professor Rubem Alves?
— Sim, respondi secamente. Eu sou sempre seco ao telefone.
— Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu com o título: ” …e os velhos se apaixonarão de novo”. O senhor já deve ter adivinhado quem está falando….
— Não, respondi. Por vezes eu sou meio burro. Aí ela se revelou:
— Sou a viúva.
Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de 40 minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais…
Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível! Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais, nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando — tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia… Ao terminar, ela fez esta observação maravilhosa:
— Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com sexo. A gente vive de ternura!

Aqui termina a lição do Evangelho.

Comments

  • chica
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    Ele é um mestre mesmo! Linda escolha esse texto!Adorei! bjs, ótima semana!chica

  • Marilene
    Responder

    Que lindo! Existe coisa melhor que a ternura para embalar dois corações????
    Um escritor que sempre mereceu meus aplausos. Bjs.

  • Ailime
    Responder

    Boa noite Norma,
    Que conto maravilhoso! Há histórias assim repletas de amor e muita ternura. Quem diz que os velhos não podem amar?
    Só mesmo quando somos novos pensamos que velho é só para contar histórias!
    Adorei e agradeço ter partilhado.
    Beijinhos e boa semana.
    Ailime
    (Gostei da sua visita no ecos;)). Obrigada,)

  • Toninho
    Responder

    Que delicia de leitura Norma deste monstro mineiro da literatura. Quantas lições e reflexões nesta cronica maravilhosa. Engraçado como esta visão não muda e os preconceitos parecem mais arraigados, tenho visto estas situações. Recentemente convivi com um senhor de 98 anos, falecido em Novembro passado, que tinha sede de companhia e sempre massacrado pelas filhas, e na realidade vivia relegado a um abandono de poucas visitas. O amor aqui bem historiado com todas suas versões, mas sempre como o elemento que inspira e faz viver melhor. O voltar a poetar, tocar um instrumento coisas esquecidas no tempo, vem o amor e acorda estas habilidades. Podemos dizer que o amor é o azeite do ser humano, que faz esta maquina rodar mais suave. Vivamos o amor sem preconceito e tenhamos dias mais leves e infindos.
    Adorei Norma esta postagem que nos inspira a escrever, refletir.
    Grato sempre pelas boas postagens para mexer com nosso interior e senso critico.
    Uma linda semana amiga.
    Bjs de paz.

  • Anete
    Responder

    Norma, gostei de ler agora o texto tão humorado e bem escolhido!
    O amor vivifica!
    Uma boa semana.
    Muita paz e o meu abraço.

  • Élys
    Responder

    O tempo passa, mas a vida será sempre bela para àqueles que mantem a ternura em seus corações.
    Um abraço.

  • Celina
    Responder

    Querida Norma, amei o conto, ainda mais porque a história começa igual à minha e de meu marido.
    Ele também ficou doente, com tuberculose, quando namorávamos, na juventude, e meus pais não queriam que me casasse, pois poderia logo ficar viúva.
    Porém, a continuação foi diferente. Teimei e casei, e estamos casados há 44 anos. O próximo aniversário de casamento deve ser em outubro.
    Achei tão interessante essa coincidência que resolvi contar a história no comentário, que, assim, passou um pouco do tamanho.
    Tenha ótima semana!

  • Norma Emiliano
    Responder

    Oi Celina, o que importa é o tocar d’alma, da partilha e vc a fez muito bem. Adorei conhecer sua história. Grata pela visita. bjs

Grata por sua visita sempre bem-vinda.

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