Um novo conceito

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Gostei deste artigo e compartilho numa proposta de debate sobre as idéias nele apresentadas.

O novo conceito de envelhecer

“Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.

Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .

Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.

A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.

Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.

Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de pasanunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade.sagem que a  Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.

A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.

”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.

Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição. Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida”.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

O Globo: 21/01/2012

Comments

  • Beth Q.
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    Bom dia, Norma!
    Gostei muito desse texto, isso principalmente “olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos”. Eu acho que a coisa está mudando, já mudou lá fora e agora chega aqui para nós. Tomara que as atitudes mudem, que nosso povo aceite com carinho e outro olhar os mais velhos e sua importância em nossa sociedade. Vi mulheres na Espanha, com mais idade que eu, usando mini saia e cabelos da cor que queriam, ninguém se importa, ninguém fica olhando e criticando.
    um beijo grande carioca

  • Socorro Melo
    Responder

    Oiê,

    Todas as fases da vida têm as suas limitações. Quando se é jovem, belo e vigoroso, não se tem sabedoria, e a liberdade é vigiada, quando se é idoso, o que falta de vigor e beleza, sobra em prudência e maturidade. A grandiosidade da vida está em saber viver cada fase a seu tempo. E hoje, felizmente, podemos atingir um expressivo número de anos, aproveitando muito mais a vida. Só depende de nós essa busca, o que os outros pensam, é problema deles. Porém, é preciso ter consciência das perdas, e viver apesar delas, para não cair no ridículo.

    Abração, amiga
    Socorro Melo

  • Élys
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    Quando jovem imaginava que ser idoso era algo muito diferente do ser jovem, Hoje sinto que apesar da foto, continuo sentindo-me feliz, pela experiência adquirida e por que mudou em muito, certos conceitos antigos que hoje não mais se aplicam. Creio: Não existem pessoas mais velhas e sim pessoas com mais idade.
    Tenha um bom fim de semana.
    Beijos.

  • josé cláudio adão
    Responder

    Que artigo Fabuloso, Norma!
    Realmente, o que precisa urgentemene envelhecer é o conceito de envelhecimento (entranhado até os ossos na nossa cultura). Velhos mesmo são aqueles que continuam insistindo que a idade é impeditivo, barreira, o fim do vigor tanto físico como intelectual e espiritual. Grande abraço. paz e bem.

  • Toninho
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    Envelhecer-se é cada dia uma arte que buscamos para entender o tempo,que tanto tem preocupado filosofos,trovadores e letristas como bem aqui ilustrado.Há uma imagem erronea da velhice porque muitos envelhecem no interior e para esta não tem solução. Certa feita ouvi a Fernanda Montenegro criticando o fato de plastica para as rugas,onde ela dizia, que aquilo tudo era vida que ela viveu e que portanto não deveria apagar.Talvez passe por ai,desde que a mente esteja no compasso do tempo. Na realidade o que se passa por este lado do mundo, é a discriminação de pessoas que avançaram sem se importar com suas historias. Em viagem pela Alemanha pude observar o carinho e o valor que os velhos profissionais da ABB tem na empresa e estavam na ativa em atividades como se fossem bibliotecas humanas da empresa, foram eles a me apresentar a empresa e administrar curso convenio com a empresa daqui,bem como me davam aula da historia da Alemanha,achei aquilo o maximo, pois aqui estariam aposentados e esquecidos. Mas há uma evolução que ja podemos sentir e ver, espero que ela não se restrinja às fantasias. Que envelhecer seja ter vida em abundancia e integração.
    Belo texto amiga e voce foi feliz na partilha,pois este assunto tem pano para muitas mangas,como se diz em Minas.
    Um abração de paz e luz.
    Bom fim de semana com alegria na familia.
    Bjo.

  • Calu
    Responder

    Esta nova tradução do envelhecer veio devagarinho, pedindo licença entre os preconceitos de plantão e foi chegando , chegando, até alcançar o palco da vida estando desde então, sob as luzes de refletores cada vez mais possantes.Ainda recebe vaias dos retrógados, mas vai colhendo mais e mais aplausos, reafirmando que apesar da crueza do olhar alheio, a velhice começa a impor sua existência como uma fase que permite sonhos e reinvenções cotidianas. A educadora Rosiska fez uma clara imagem dos fatos que cercam o tema.
    Adorei o texto. Obrigada Norma, por trazer-nos tão boa reflexão.
    Bom domingo.
    Bjos,
    Calu

Grata por sua visita sempre bem-vinda.

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