Famílias e Políticas Públicas
“A família é um princípio de construção ao mesmo tempo imanente aos indivíduos e transcendente em relação a eles”. Bourdieu, 1996
A família é reconhecida como um dos mais antigos provedores de cuidados (bem-estar) e, assim, tem sido valorizada mundialmente no âmbito da sua importância no contexto da vida social.
Desde o início dos anos 90, surgem pressões dos órgãos internacionais para a “recuperação da família como lugar de busca de condições materiais de vida, de pertencimento na sociedade e de construção de identidade, principalmente nas experiências de insegurança, de perda de lugar na sociedade e de ameaça de pauperização trazidas pelo desemprego”. (Wanderley, 1997 apud MIOTO, 2006,). Por sua vez, o Brasil, inseriu-se economicamente numa ordem globalizada.
Nesta perspectiva, o Estado vai combinar os mais diversos fatores, como novas tecnologias, desregulamentação, liberalização dos mercados, privatização de empresas estatais, integração das esferas nacionais, supressão de direitos trabalhistas e previdenciários. (SOUZA, 1997). Com o avanço tecnológico houve automatização dos trabalhos menos qualificados, a maioria dos empregos da manufatura passou para o setor de serviços e conseqüentemente o nível e a ocupação de empregos passaram a ser mais vinculado as atividades terciárias. Disto resultaram um crescente desemprego e precariedade das relações e condições de trabalho. (Antunes, 1999). Soma-se a este quadro a questão do processo de concentração de renda, sentido na diminuição do poder de compra dos trabalhadores pobres em relação aos que tiveram aumento expressivo de renda real. Tal fato resultou no crescimento da desigualdade de renda. O quadro é de empobrecimento, cada vez maior, dos trabalhadores e de suas famílias (ALENCAR, 2006). Num sentido paradoxal, as responsabilidades que deveriam ser do Estado passam a ser assumidas pela comunidade e famílias. Assim sendo, a família tem sido chamada a enfrentar responsabilidades para as quais não tem tido suportes para enfrentá-las.
Os efeitos da crise econômica e das políticas de ajustes econômicos iniciados na década de 90, no Brasil, não tornaram, na prática, possíveis as reformas institucionais mais amplas nos sistemas de proteção social. Entretanto, conforme assinala Alencar, 2006, ocorre a convivência de modalidades de proteção social que combinam velhos padrões e novos elementos de gestão pública de programas sociais, sendo priorizados os programas focalizados, os fundos sociais de emergência e os programas compensatórios direcionados ao atendimento dos grupos pobres e vulneráveis.
O processo de modernização e os novos padrões familiares trazem novos desafios. O modelo de família assumido como universal (um casal heterossexual, legalmente casado, com dois filhos e vivendo num mesmo espaço) orientou e em alguns casos ainda orienta as políticas sociais. Entretanto, a vida familiar se modificou para todos os segmentos da população brasileira. As famílias tornam- se mais heterogêneas e as novas formas levaram a mudanças conceituais e jurídica. Portanto, é imprescindível que ao se considerar a centralidade das famílias como fator de proteção social atente-se para seu caráter participante nos processos das mudanças, bem como às suas transformações internas.
O ano de 1994 foi definido pela ONU como o “Ano Internacional da Família”. Constituiu-se também um marco brasileiro de oficialização da família, como foco do cuidado profissional de Saúde em atenção básica, através do Programa Estratégia de Saúde da Família (PSF). (SERAPIONI, 2007). Entretanto, as diversas análises apontam inúmeras contradições.
No cotidiano profissional, no Serviço Social e prática clínica, podemos nos deparar com situações que nos levam a refletir sobre as peculiaridades da configuração familiar atual e sobre os recursos fornecidos pelas políticas sociais em prol da proteção social da família. Assim, através de um estudo de caso, de uma mulher afastada do trabalho por problemas de saúde (sindrome do pânico), observamos que esta pessoa, aos 63 anos, separada, com renda de CR$ 960,00, é a única fonte de renda estável em sua família composta de seis membros. Vivem sob o mesmo teto: a pessoa entrevistada, uma filha solteira de 30 anos com sequelas de parto (excepcional); uma filha casada de 29 anos e o marido, ambos com nível de escolaridade segundo grau incompleto; um filho solteiro de 35 anos, nível de escolaridade primário, com um filho de 4 anos.
O filho encontra- se desempregado; o genro, com serviços de biscates; uma das filha (excepional) não trabalha e a outra trabalha sem vínculo empregatício. Residem numa habitação em precárias condições numa localidade sem saneamento básico e de alta periculosidade.
Podemos observar a partir deste caso vários aspectos: agrupamento de vários nucleos familiares num só, em condições mínimas de sobrevivência; velhice sobregarregada de encargos familiares; doença crônica sem um suporte institucional; insegurança pública; desemprego; precariedade de trabalho; quase total ausência de benefício previdenciário.
Assim, podemos ilustrar e acrescentar de acordo com Gomes e Pereira (2005) como a crise do Estado se expressa na vida de grande parte da população que tem sido atingida diretamente pela ineficácia e inexistência de políticas públicas: famílias desassistidas, morando em favelas sem mínimo de condições de vida digna; hospitais sem condições de atendimento, escolas públicas funcionando em condições precárias, crianças e adolescentes nas ruas, velhice desassistidas etc.
A família como um dos atores da proteção social vive, hoje, um grande paradoxo, pois encontra-se num contexto sócio-econômico que lhe traz vulnerabilidade e ao mesmo tempo lhe transfere encargos. Parafraseando Vasconcelos, 2000, é necessário retomar a família e a comunidade como ponto de partida de praticas sociais alterativas e não simplesmente alternativas.
ALENCAR. M.T. Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos 1990 e seu impacto no âmbito da família. In LEAL, Mione (org) Política Social, Família e Juventude- Uma questão de direitos. Cortez Ed. São Paulo, 2006.
GOMES M.A; PEREIRA, M.L. D. Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Ciência. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, 2005.
MIOTO.R. Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no ontexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar.In LEAL, Mione (org) Política Social, Família e Juventude- Uma questão d direitos Cotez Ed. São Paulo, 2006.
SERAPIONI. M. O papel da família e das redes primárias na reestruturação das políticas sociais Ciência. saúde coletiva. 2007.
SOUZA, Maria Adélia de. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1997.