Demolições e histórias
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Quem não se recorda de sua primeira moradia? São lembranças preciosas de momentos de descobertas, de intensidade de emoções. Móveis, quadros, objetos e cômodos ficam tão registrados no inconsciente que ao se fecharem os olhos, ao se recordarem cenas familiares antigas, é possível sentir cheiros e ouvir ruídos. Enfim, são memórias de um tempo, marcas de uma história. Para Bachelard (1990. p.89) “é impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa”. A memória constitui-se através da relação significativa com parentes, vizinhos, pelos objetos pessoais, livros etc.. É um fenômeno construído socialmente.
Hoje, é impressionante o número de residências, casas antigas colocadas abaixo em nome da modernidade. As marretas e tratores ensurdecem os ouvidos e doem na alma. Os edifícios tomam seus espaços. A importância histórico-arquitetônica não é valorizada e as famílias, sem se darem conta, perdem parte das suas histórias. Por outro lado, não há interesse do poder público em relação à qualidade de vida da comunidade nem à memória histórica, bem como não há um correlato planejamento urbano (esgoto, alargamento das ruas).
Que caminhos trilhados são esses? A sociedade passivamente acompanha as derrubadas; algumas pessoas utilizam, hoje, para o comércio (do designer ao comércio de objetos e à realização de eventos) belas mansões que no passado pertenciam às famílias tradicionais. Essas moradias poderiam ser restauradas e funcionarem como espaço cultural. È lamentável constatar a perda da memória histórica, da inexistência de registros dos antigos imóveis.
A localização de uma lembrança “necessita o desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado” (Bosi, 1994, p. 413). Dessa forma, tudo isso me remete às dores observadas em algumas pessoas e famílias, quando por exemplo, após a morte de ancestrais, ocorre venda da casa pelos filhos. Quanto sofrimento ao abandonar suas recordações! Na realidade as demolições nos reportam ao desgaste de um tempo, à morte daqueles que ardentemente desejamos manter na memória. Na “memória emocional vivemos como se todos que amamos devessem, no fastígio da nossa idade, viver juntos, morar juntos” (Bachelard, 1988, p. 116).
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
___________________A Terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
Norma
Comments
Beth Q.
Bom dia, Norma!
Seu texto e as colocações de Bachelard são perfeitas e vêem ao encontro do que visualizo e reclamo muito aqui nesta cidade. A falta de respeito pela memória e a construção desenfreada de prédios nos lugares em que às vezes só tinha uma casa ou duas, demonstra a falta de respeito dos governantes e a corrupção deslavada que corrompe e destrói as memórias de um povo.
Fiz um post mais antigo, quase no início do meu blog que falava mais ou menos sobre isso. Veja no link abaixo:
http://supremamaegaia.blogspot.com/2008/02/e-vai-seguindo-construo.html
beijos cariocas
José Cláudio (Cacá)
Imagine a minha dor, eu que sou historiador e que morei mais de 20 anos numa cidade histórica (graças a Deus ainda preservada). Agora, na cidade grande, moderna, dá pena ver o descaso que as pessoas possuem com a história. Tudo o que é antigo para elas parece cheirar mofo, parece suscitar demolição e erigimento do novo. Em nome de que? Amei ese artigo. Aqui é sempre muito bom. Abraços, Norma! Paz e bem.
Tetê
Oi, querida… Obrigada pela visita ao Livre Pensamento! Infelizmente é só o que se vê… É o tempo do descartável, parece que nada mais tem valor. E isso se reflete nos sentimentos! Bom final de semana! Bjks Tetê
Luciana P.
Oi, Norma, os valores estão mais do que modificados. Não se procura mais em preservar coisas que antigamente tínhamos como essenciais. O mundo está banal, infelizmente. Ótima reflexão a sua! Parabéns! Beijos pra ti e ótimo final de semana!
Astrid Annabelle
Olá Norma querida!
Também sou favorável à preservação da história de um lugar.
Infelizmente parte, muitas das vezes, da própria família esse descaso em preservar a história. Existem pessoas que sequer conhecem a sua própria origem…
Muito bom esse seu texto…parabéns!
Um beijo
Astrid Annabelle