Cegueira

A visão dos olhos atrapalha a visão interior (…). Hermeto Paschoal

 

cegueira

 

Acompanhado por sua irmã, senta- se ereto como se fixasse o olhar e começa a falar:

A vida traz surpresas! Quando eu iria pensar que deixaria de enxergar? Com essas palavras traduz o seu momento.

Casado, 49 anos, pai de dois filhos ainda dependentes financeiramente e com esposa do lar, ele é arrimo da família. Há quatro anos começou sua luta em relação aos problemas oftalmológicos. Submeteu-se a cinco cirurgias que só foram agravando sua visão, até ficar como se encontra hoje, só vendo névoas.

Minha irmã são os meus olhos, ela tem me ajudado a ir e vir. Permaneci no trabalho com ajuda de outras pessoas e não vou deixar de ter esperanças, mesmo que o médico me diga que não há mais nada a fazer. Vou às consultas, utilizo a medicação. Ajudei muitas pessoas cegas atravessarem as ruas, não imaginava que um dia seria eu o ajudado. Não nasci para ser cego. A cegueira existe na minha mente não está no meu espírito.

Ele perdeu sua auto-referência. Nega a patologia e não aceita sua limitação. Rejeita pensar em bengala ou mesmo em aprender Braille.  A família mantém a sua ilusão com receio da depressão. Ele encontra-se aprisionado ao corpo vidente.

Nas palavras de Thomas J. Carrol (1968 in Lowenfeld, 1991) “a perda da visão é o fim de uma certa maneira de viver que era parte do homem (…) mas, com a morte do homem de visão, o homem cego nascerá e sua vida poderá ser boa“. Outros estudiosos do tema também afirmam que a cegueira provoca uma grande reorganização de todas as forças do organismo e da personalidade, sendo assim uma fonte de manifestação das capacidades.

Estendeu-me com firmeza o braço e com aperto de mãos retirou-se, apoiado na irmã.

No desafio de novos olhares o corpo é o carro chefe, citando Merleau-Ponty (1991), que afirma “ser o corpo o vínculo entre o eu e as coisas”.

Enfim, nas perdas é necessário fazer o luto e entender as suas emoções. Por outro, na reorganização é também necessário entrar em confronto com sua vida racional e afetiva, compreender a dependência e reconhecer as suas limitações. Quem sabe se no contacto dessa experiência perceptiva possa haver libertação?

Referências

LOWENFELD,  B. What is blindness? In: Berthold Lowenfeld on blindness and blind people select papers.  New Yorker: American Foundation for the Blind, 1991

MERLAU- PONTY, M. Signus. São Paulo: Martins Fonte, 1991.

Norma Emiliano

Este texto foi publicado em 2010

 

Comments

  • Diná Fernandes de Oliveira Souza Souza
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    Olá Norma, imagino o quanto deve ser desconfortável e até revoltante parar de ver o mundo que nos cerca, ainda há uma saída , a sensibilidade exacerbada põe o mundo nas digitais. Muito lindo e comovente.
    Abração e bfs!

  • taislc
    Responder

    Sensacional, Norma, conheço 2 pessoas que foram perdendo a visão! Muito bem escrito e comovente. É bem assim. Mas é difícil saber o que vai na alma… não sei como eu enfrentaria algo assim.
    Beijo, amiga, um ótimo feriado.

  • toninhobira
    Responder

    Ola Norma, uma condição jamais esperada, mas que possível e que nós temos visto muitos que se superam justamente por permissão de outros órgãos como diz na postagem sobre a libertação do olhar interno. Interessante o pensamento do Hermeto Paschoal excelente mestre dos sons. As vezes penso que dos sentidos o mais difícil de conviver seja a perda da visão.
    Uma bela partilha Norma.
    Beijo

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