Metamorfose
Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e viu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Não tinha mais antenas. Quis emitir um som de surpresa e sem querer deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu segundo pensamento foi: “Que horror… Preciso acabar com essas baratas…”
Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto com a cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa e encontrou um armário num quarto, e nele, roupa de baixo e um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquiou-se. Todas as baratas são iguais, mas as mulheres precisam realçar sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia?… Tinha educação?…. Referências?… Conseguiu a muito custo um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas. Era uma boa faxineira.
Difícil era ser gente… Precisava comprar comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Conhecem-se, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar ? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. Vandirene casou-se, teve filhos. Lutou muito, coitada. Filas no Instituto Nacional de Previdência Social. Pouco leite. O marido desempregado… Finalmente acertou na loteria. Quase quatro milhões ! Entre as baratas ter ou não ter quatro milhões não faz diferença. Mas Vandirene mudou. Empregou o dinheiro. Mudou de bairro. Comprou casa. Passou a vestir bem, a comer bem, a cuidar onde põe o pronome. Subiu de classe. Contratou babás e entrou na Pontifícia Universidade Católica.
Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado em barata. Seu penúltimo pensamento humano foi : “Meu Deus!… A casa foi dedetizada há dois dias!…”. Seu último pensamento humano foi para seu dinheiro rendendo na financeira e que o safado do marido, seu herdeiro legal, o usaria. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu cinco minutos depois , mas foram os cinco minutos mais felizes de sua vida.
Kafka não significa nada para as baratas…
Luis Fernando Veríssimo
Comments
chica
Que texto legal esse!
Adorei reler Já o conhecia e gosto muito do L.Fernando! Valeu ! beijos, chica
Roselia Bezerra
Olá, querida Norma
É, pra que gastar tanta energia cuidando de onde pomos os pronomes visto que , na prática, falamos tudo errado mesmo?
Os interesses humanos são totalmente descartáveis diante da morte, mais certo do que dois e dois são quatro…
Agora, os valores são o que levamos após a ‘negra visita’…
Muito bom o texto!
Bjm fraternal
Toninho
Que lindo reler esta perola do Luís em referencia aos conceitos de poder e subjugação inspirados lá no O Processo e Metamorfose.
Muito bom Norma.
Grato pela partilha.
Abraços querida amiga.
Beijo
Beth Lilás
Que legal esta mistura de Kafka e Veríssimo, muito inteligente o texto e muito a ver com todos nós neste mundo insano em consumismo, quando o que nos espera, de verdade, é tão somente a morte!
beijos cariocas
Poções de Arte
Por isso sou fã do Veríssimo. Ele tem o dom de num texto, numa crônica, mexer com tantas sentimentos dentro de nós…
Esse eu ainda não conhecia e adorei.
Abraços e lindo final de semana.