Perdas – Betânia

 

Em continuação a esta Série, temos  o relato da amiga Betânia  que é pernambucana e  mora atualmente  em Natal (RN).  Ela não é blogueira, mas  acompanha meu espaço e nos presenteia com seu relato. Betânia é  mãe de um filho de 12 anos, Doutoranda em ciências sociais e Professora do Depto de Gestão Ambiental/Curso de Gestão Ambiental.

 Seu e-mail   betaniatorres@gmail.com ( autorizado).

 

” É a imagem na mente  que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá forma à imagem.” Colette in Judith Viorst

 

 PERDA: quando a relação espaço-tempo reaviva a presença/ausência do outro

 

Magrite

Imagem enviada por ela. 

 

 Havia pensado em começar assim: A gente sempre sofre diversas perdas nas nossas vidas. O tom do texto iria ficar bastante amplo e eu poderia não dar conta do que efetivamente me prontifiquei a relatar  sobre a perda que resolvi desenvolver neste texto (pensei em escrever: gostaria de falar, mas quem gosta de falar sobre perdas?). Mas, o tema me chamou e achei que deveria prestar atenção a esse chamado. O que a perda teria a me dizer e que reflexões esse debate iria tirar do meu baú de memórias. A perda que me veio à memória e sobre a qual sentir vontade de narrar foi à morte do meu pai.

Vou começar pelo começo. Papai nasceu em 18 de agosto de 1911, numa cidade do interior de Pernambuco. Filho mais velho de uma família de dois homens e sete mulheres. Nunca foi a escola. Aprendeu a ler e escrever e a contar com a minha avó. Um aprendizado e tanto, de fazer inveja a muita escola de hoje. Muito cedo, com a morte do meu avô, assumiu a responsabilidade de cuidar da sua família, sendo o filho mais velho.

Também construiu sua própria família. Teve dois casamentos. Viúvo do primeiro e com uma filha de 5 anos, desejava novamente se casar. Foi quando conheceu minha mãe, que na época tinha 15 anos. Entre conhecer, namorar e casar não precisou de muito tempo não, apenas seis meses. O casamento durou 49 anos.

Falando no dia do casamento, foi o dia mais feliz da vida da mamãe, teve almoço na cidade e forró no engenho onde iria morar com papai, que era um pequeno comerciante de engenho de açúcar, denominado na época de “barraqueiro”. O meu avô materno contratou os melhores forrozeiros da redondeza e a festa durou a noite inteira, segundo relatos da minha mãe, hoje com 87 anos.

Desse encontro, tiveram 14 filhos vivos, perderam dois filhos, um com 8 meses; e, o outro aos 12 anos decorrente de apendicite aguda. Senão seríamos uma família de 17 filhos e filhas.

Na trajetória de vida de papai, a responsabilidade, o ascetismo, o rigor com relação aos princípios e valores foi muito rígido. Nenhuma falha dos filhos era ponderada, a punição era imediata. Contrastando com esse rigor, o afeto, o incentivo, as festas. A nossa casa, era uma casa onde sempre aos domingos, aniversários, natal e ano novo, ficava repleta de familiares e dos poucos amigos mais chegados.

Ele não era uma pessoa de vícios, fumava e bebia sem exageros. Ainda assim, cortou esses hábitos para não dar mal exemplo aos filhos. Era também uma pessoa esguia e elegante, sem ser vaidosa ou arrogante, um tanto tenso.

Sempre atento aos seus objetivos de ver os filhos na escola e com gosto pelos estudos e pela leitura, comprava jornais todos os domingos e também adquiria livros e enciclopédias para o acervo da nossa pequena estante que ficava na sala de jantar.

A música também fazia parte da nossa vida. O gosto musical de papai era de qualidade. Gostava de chorinhos, música instrumental e regional. Então, tínhamos uma radiola e um pequeno acervo de vinis, como contribuição cultural para a nossa família.

Em meio ao rigor aos princípios e valores que ele tinha estabelecido e a preocupação com a sociedade, havia também o pai que montava balanço na árvore, que caminhava na mata, que plantava e colhia frutos e verduras para nossa família. E que bem cedinho nos períodos de férias fazia a gente tomar leite direto da vaca.

Com tantos filhos, vieram os netos e netas. O coração duro desse senhor logo amoleceu, dedicava-se amorosamente aos netos, com uma desconhecida paciência.

Papai teve uma vida dura, de muito trabalho e de muitos filhos para educar. Durante certo tempo, nossa família morou na área rural, mas a sua preocupação em contribuir para os estudos dos filhos, fez com que construísse uma casa na cidade, cujo arquiteto foi ele mesmo.

Quando nasci, já estavam todos na cidade, menos papai que continuava trabalhando com o comércio de barracão de engenho e vinha para casa quinzenalmente. Quando ele apontava no começo da rua, tínhamos que correr depressa pra casa, porque ele não podia chegar sem que seus filhos e filhas estivessem todos dentro de casa. Então, na sua ausência tínhamos a rua, na sua presença tínhamos a casa, a igreja, a conversa na mesa, o lanche das três da tarde. Nem sempre eu gostava, era inquieta e gostava de brincar na rua. Na sua ausência também, tínhamos os olhos atentos dos irmãos mais velhos.

Contudo, quando ele estava na cidade, sempre contava comigo para fazer as compras que deveria levar para o barracão e me mandava à rua com uma lista de itens para comprar. Eu adorava, pois sempre ganhava dinheiro e também um pouco de liberdade, além dos elogios pelo meu desempenho e habilidade.

“Fazer faculdade”, “estudar”, eram palavras que saiam constantemente da boca do meu pai em direção aos seus filhos. Trabalhou com afinco para dar conta de roupa, casa, comida e escola para os filhos. Evidentemente que teve na sua caminhada a companhia da minha mãe, que fazia sua parte no ambiente doméstico, cuidando da reprodução social da nossa família. Minha mãe, com um jeito silencioso e meigo, era seu braço forte na vida.

Depois, de um longo período morando no interior de Pernambuco, agora com quase todos os filhos casados, restavam quatro filhas solteiras; também, já havia um movimento no sentido da capital. Ele se empenhou para mais essa mudança. Vendemos a nossa casa e fomos morar no Recife-PE. Nesta época, eu já tinha 15 anos. E sendo adolescente, vivia em conflitos e tensões com papai e mamãe. Ele sempre me vigiando, atento.

Na capital, a nossa liberdade foi ampliada, papai vivia no trecho Recife-Água Preta (engenho), com períodos mais longos de visita, até se aposentar. Ganhei as ruas do Recife. A cada vinda de papai havia sempre um conflito, ele sempre desconfiado das filhas virgens, qualquer correspondência que chegava pelos correios ele queria abrir mesmo que fosse endereçada no nome das filhas. Isso era mais confusão. Tiveram muitas.

Chegando ao momento difícil. Quando papai morreu no dia 23 de setembro de 1989, ele tinha 78 anos e eu 25 anos de idade. Hoje, quando me recordo,  sinto que foi uma perda esquisita para mim. Havia alguns dias que ele estava doentinho, com febre, diarréias, foi ao médico, ficou uns dias na casa de minha irmã, mas resolveu voltar para nosso apartamento, fincou o pé e aí já se pode imaginar.

Nesse período, eu vivia muito ausente de casa e dos encontros familiares, estava sempre com minha turma, descobrindo coisas e situações novas. Mas sempre telefonava para mamãe para avisá-la dos meus passos e saber como estavam as coisas na nossa família.

Então, dia 22 de setembro de 1989, telefonei e mamãe me pediu para ir dormir em casa, pois papai não estava muito bem. Fui. Chegando em casa, depois da faculdade, por volta das 23:30 horas, fui falar com papai e saber como ele se sentia e ele não estava bem e me falou: “seu pai não está nada bem minha filha, acho que não vivo mais não”. Estava bastante febril, com um semblante de tristeza. Na verdade, tirar um sorriso de papai não era muito fácil, sempre muito sério e preocupado. Pedi a benção, dei um beijo  e fui dormir um tanto preocupada.

Antes que o dia amanhecesse completamente, mamãe acorda a gente (eu e minhas três irmãs) chorando dizendo que papai estava desmaiado na cama. Na verdade, ele tentou levantar-se e caiu deitado na cama. Eu e Sônia, uma das minhas irmãs, fomos buscar ajuda para levá-lo ao hospital. Um vizinho, atencioso, nos ajudou e junto com os filhos dele carregou papai até o carro. Papai era um homem alto e forte, só homens quem poderia carregá-lo. No carro, eu, minha irmã e papai no nosso colo, quentinho ainda, mas completamente desfalecido, na frente mamãe com o nosso vizinho. Chegando ao hospital, nada havia de ser feito, papai havia tido um infarto fulminante e estava morto.

Fomos eu e minha irmã providenciar o enterro e o velório, o que foi feito e alguém fez o registro em forma de um cartão para lembrá-lo. Quando tudo estava organizado, liguei para o meu namorado e narrei o acontecido, ele se ofereceu para ficar junto comigo por algumas horas antes do enterro e fomos a um restaurante próximo conversar sobre o acontecido. Mas eu não chorava, sentia a perda, sabia quem eu estava perdendo, mas não chorava. E achava isso muito esquisito, como não chorar com a morte do meu pai? Doía, mas as lágrimas não saíram naqueles dias. Findas as formalidades, voltamos todos para casa, na maior tristeza, com o peso forte da ausência, agora irremediável.

Os dias seguintes para mim foram dias de memória. Fazia meus trajetos pela cidade e a minha memória só acenava que agora ele não estava mais entre nós, que eu não iria mais vê-lo e esse pensamento me dava um nó na garganta. Eu era a filha caçula de 15 filhos. Quando  pequena nem podia cortar meus cabelos loiros, sem a autorização dele. Claro que desobedeci, o que gerou um conflito entre pai e filha, depois sanado. Mas  eu sempre me portava com rebeldia diante dos dogmas paterno. Ainda assim, ele era meu fã e vivia na torcida. Cada conquista minha, estava ele ali, registrando, guardando, apoiando, me empurrando pra frente. E agora, sem o meu torcedor mais forte, como iria me arranjar?

No ano que papai morreu, 1989, eu iria concluir o curso de licenciatura em ciências sociais numa faculdade particular. Quando passei no vestibular e meu nome saiu no jornal, claro que ele recortou e guardou para si a matéria, que agora está comigo. Ele já havia dito desde sempre que me daria o anel de formatura, mas eu mesma não queria o anel e falei que queria um aparelho de som para ouvir música. Meses antes de morrer, me presenteou com o que eu queria. Era tão forte a vontade dele para que um filho entrasse na faculdade que ecoou dentro de mim, a mais trabalhosa das filhas e a única a ter o título de universitária. Ele nem viu esse momento, porque morreu meses antes, mas a presença dele na minha caminhada é muito viva e a ausência sentida.

Betânia Torres.

A capacidade da mente humana de absorver a perda é gradual. O chogue inicial a imobiliza,  favorecendo que o tempo nos ajude a compreender a sua extensão.

Viorst  observa com muita propriedade que procuramos nossos mortos e que esta procura  pode se manifestar de várias formas como por exemplo visitar lugares, nos sonhos, entre outras. Enfim, seguir adiante apesar das perdas é desenvolver estratégias para  enfrentá-las. Para alguns  pode ser  uma  forma  de estimulo para o desenvolvimento pessoal.

Querida Betânia grata por abrir seu coração retomando partes de sua história tão significativas. Caminhe na certeza de que a torcida não se foi,  pois se concretiza dentro do seu própria SER.

Norma

Comments

  • astrid-annabelle
    Responder

    excelente relato de sua amiga sobre a perda do pai.
    Nos faz pensar

  • chica
    Responder

    Norma.
    Impressionante história de vida e passando por tantas coisas ,com o avô, pai doente…Que bom que ela fez o que ele mais queria, ver um filho formado…LIndo! …beijos,chica e meu beijo à Betânia também.

  • Ana Karla – Misturação Misturão
    Responder

    Bom dia Norma!
    Acabo de ler o relato de Betania e estou emocionada.
    Ela escreveu maravilhosamente bem, com palavras compreensivas de gente inteligente.
    É assim que vou aprendendo cada vez mais.
    Uma história e tanto.
    Xeros

  • Toninhobira
    Responder

    Um relato comovente com momentos de conflitos,mas prevalecendo o amor e culimina com esta definição de perda,aqui retratada no pai. Enfim um relato de vida com todas as lutas de pessoas simples e que sonha vencer na vida. Interessante esta referencia à educação nos moldes antigos. Pois eu vivi tudo isto.Parabens a Betania por compartilhar esta sua reflexão da perda.Parabens Norma mais uma vez por esta abertura e idéia.
    Meu abraço Norma com toda minha admiração.

  • lucia soares
    Responder

    Perda de pai e mãe são sempre dolorosas. Parece que morremos um pouco.
    Quando me pai morreu eu já tinha mais de 40 anos, minha casa, meus filhos já crescidos, mas senti duramente o que é ser órfã… Minha mãe tem 85 anos, hoje sou mais mãe que filha (no sentido de ter que “tomar conta dela”, como ela tomou de nós) e fico triste em pensar que posso perdê-la logo.
    Que Betânia já tenha superado sua perda (leva tantos anos…) e que as lembranças boas acalentem sua vida, sempre.
    Beijo pras duas.

  • Maria emilia Xavier
    Responder

    Lendo você Betânia não pude deixar de ir às lágrimas. Meu Pai e seu Pai , tão parecidos na determinação de vida, eu e você – caçulas – rebeldes e vivendo os conflitos naturais das que têm determinação – como Eles -, minha Mãe e sua Mãe o esteio, o braço forte que com delicadeza,feminilidade e brandura conduzia a família. Seu relato é muito parecido com tudo que vivi com meu Pai, diferente apenas que meu Pai sempre morou conosco e ficaram casados por cinquenta e oito anos, quando minha Mãe foi embora.
    Norma, APLAUSOS, APLAUSOS, APLAUSOS…

  • Nilce
    Responder

    Nossa a história da Betânia é muito parecida com a minha. Muito triste, mas ela conseguiu se recuperar antes.
    Bjs no coração
    Nilce

  • Betânia Torres
    Responder

    Norma e comentaristas,

    Nossa como meu relato ficou longo. Só percebi depois de publicado. Da próxima, tentarei ser mais concisa. Norma, obrigada pelo apoio.
    A tod@s, obrigada pela leitura atenta e palavras amigas. Um abraço, Betânia

  • Gina
    Responder

    Parecia que estava lendo um livro. Uma história e tanto!
    As perdas são sempre sofridas. Parece que esquecemos de nos preparar para elas.
    Bjs.

  • Socorro Melo
    Responder

    Norma,

    A Betania nos deu a conhecer o seu pai, e descreveu tudo com tanta emoção, que parecia que o conhecíamos também. E a emoção da história nos fez sentir essa perda. Perdas são sempre dolorosas, mas, fica o amor que é imortal, e infinito. E gostei da sua conclusão: de que ele continua na torcida…

    Parabéns a Betânia pela disponibilidade, e a você por esta série tão interessante.

    Um grande abraço
    Socorro Melo

  • Norma Emiliano
    Responder

    Queridas (os)

    Encerro mais um dia gratificada pela participação de todos que têm compartilhado desta série trocando experiências e expressando suas emoções e sentimentos pertinentes a perdas aqui relatadas.

    Mais uma vez obrigada querida Betânia por depositar sua confiança em minhas propostas e, principalmente, por este seu relato comovente de amor. Nossos pais são eternos e carregamos até a nossa própria despedida o amor que recebemos e que expressamos em nossas ações cotidiana.

    Espero vocês na próxima quarta, 04/05 , com a participação da querida Ana Karla.
    bjs
    Norma

Grata por sua visita sempre bem-vinda.

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