Nó da memória

A memória recolhe os incontáveis fenômenos de nossa existência em um todo unitário; não fosse a força unificadora da memória, nossa consciência se estilhaçaria em tantos fragmentos quantos os segundos já vividos. Ewald Hering (1920)

Protopoema José Saramago

“Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas. Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio. Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória. Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar do coração. Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco. Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva. Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos. Depois saberei tudo.”

(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)

Grata por sua visita sempre bem-vinda

Comments

  • chica
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    Profundo e lindo poema de Saramago!
    Linda nova semana!

    beijos praianos, chica

  • Rosélia Bezerra
    Responder

    Boa noite de domingo, querida amiga Norma!
    Quando os nós se enlaçarem na memória, a visão fica cheia de metáforas bonitas que nos permitem novos horizontes e pontuações.
    Bom adentrar nos meandros de Saramago.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Beijinhos com carinho fraterno

  • Anete
    Responder

    Começando uma semana com um ótimo texto que nos trazes de Saramago, autor profundo e introspectivo que nos faz pensar e entender mais sobre os nós da memória.
    O meu abraço. Venha conhecer “Firmino” no Ciranda de Frases (o nome veio da palavra firmeza, rsss).

  • Verena.
    Responder

    Obrigada por compartilhar tão lindo poema de Saramago, Norma.
    Tenha uma excelente semana.
    Beijinhos
    Verena.

  • Ailime
    Responder

    Boa noite Norma,
    Belo e muito profundo este protopoema de Saramago, que não conhecia e que adorei.
    Obrigada pela partilha.
    Beijinhos,
    Aikime

  • toninhobira
    Responder

    Quando a memória dá um nó e ficamos a procura da ponta do novelo, uma luta desigual e que define toda nossa existência neste emaranhado chamado vida, onde desvencilhamos nós. Beleza de partilha com Saramago que as vezes funde nossa mente, mas sabe como poucos nos traduzir pelas partes.
    Grato Norma.
    Bjs e feliz semana.

Grata por sua visita sempre bem-vinda.

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