Um conto de amor

Iniciamos 2016 com  uma estória que nos possibilita refletir sobre os encontros amorosos. motivações, expectativas, diferenças, sentimentos ambíguos e formas de construção da relação.

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A pipa e a flor

Era uma vez uma pipa.

O menino que a fez estava alegre e imaginou que a pipa também estaria. Por isso fez nela uma cara risonha, colando tiras de papel de seda vermelho: dois olhos, um nariz, uma boca…

Ô pipa boa: levinha, travessa, subia alto…

Gostava de brincar com o perigo, vivia zombando dos fios e dos galhos das árvores.

– “Vocês não me pegam, vocês não me pegam…”

E enquanto ria sacudia o rabo em desafio.

Chegou até a rasgar o papel, num galho que foi mais rápido, mas o menino consertou, colando um remendo da mesma cor.

Mas aconteceu que num dia, ela estava começando a subir, correndo de um lado para o outro no vento, olhou para baixo e viu, lá num quintal, uma flor. Ela já havia visto muitas flores. Só que desta vez os seus olhos e os olhos da flor se encontraram, e ela sentiu uma coisa estranha. Não, não era a beleza da flor. Já vira outras, mais belas. Eram os olhos…

Quem não entende pensa que todos os olhos são parecidos, só diferentes na cor. Mas não é assim. Há olhos que agradam, acariciam a gente como se fossem mãos. Outros dão medo, ameaçam, acusam, quando a gente se percebe encarados por eles, dá um arrepio ruim elo corpo. Tem também os olhos que colam, hipnotizam, enfeitiçam…

Ah! Você não sabe o que é enfeitiçar?!

Enfeitiçar é virar a gente pelo avesso: as coisas boas ficam escondidas, não têm permissão para aparecer; e as coisas ruins começam a sair. Todo mundo é uma mistura de coisas boas e ruins; às vezes a gente está sorrindo, às vezes a gente está de cara feia. Mas o enfeitiçado fica sendo uma coisa só…

Pois é, o enfeitiçado não pode mais fazer o que ele quer, fica esquecido de quem ele era…

A pipa ficou enfeitiçada. Não mais queria ser pipa. Só queria ser uma coisa: fazer o que a florzinha quisesse. Ah! Ela era tão maravilhosa! Que felicidade se pudesse ficar de mãos dadas com ela, pelo resto dos seus dias…

E assim, resolver mudar de dono. Aproveitando-se de um vento forte, deu um puxão repentino na linha, ela arrebentou e a pipa foi cair, devagarzinho, ao lado da flor.

E deu a sua linha para ela segurar. Ela segurou forte.

Agora, sua linha nas mãos da flor, a pipa pensou que voar seria muito mais gostoso. Lá de cima conversaria com ela, e ao voltar lhe contaria estórias para que ela dormisse. E ela pediu:

– “Florzinha, me solta…” E a florzinha soltou.

A pipa subiu bem alto e seu coração bateu feliz. Quando se está lá no alto é bom saber que há alguém esperando, lá embaixo.

Mas a flor, aqui de baixo, percebeu que estava ficando triste. Não, não é que estivesse triste. Estava ficando com raiva. Que injustiça que a pipa pudesse voar tão alto, e ela tivesse de ficar plantada no não. E teve inveja da pipa.

Tinha raiva ao ver a felicidade da pipa, longe dela… Tinha raiva quando via as pipas lá em cima, tagarelando entre si. E ela flor, sozinha, deixada de fora.

– “Se a pipa me amasse de verdade não poderia estar feliz lá em cima, longe de mim. Ficaria o tempo todo aqui comigo…”

E à inveja juntou-se o ciúme.

Inveja é ficar infeliz vendo as coisas bonitas e boas que os outros têm, e nós não. Ciúme é a dor que dá quando a gente imagina a felicidade do outro, sem que a gente esteja com ele.

E a flor começou a ficar malvada. Ficava emburrada quando a pipa chegava. Exigia explicações de tudo. E a pipa começou a ter medo de ficar feliz, pois sabia que isto faria a flor sofrer.

E a flor aos poucos foi encurtando a linha. A pipa não podia mais voar.

Via ali do baixinho, de sobre o quintal (esta essa toda a distância que a flor lhe permitia voar) as pipas lá em cima… E sua boca foi ficando triste. E percebeu que já não gostava tanto da flor, como no início…

Essa história não terminou. Está acontecendo bem agora, em algum lugar… E há três jeitos de escrever o seu fim. Você é que vai escolher.
Primeiro: A pipa ficou tão triste que resolveu nunca mais voar.

– “Não vou te incomodar com os meus risos, Flor, mas também não vou te dar a alegria do meu sorriso”.
E assim ficou amarrada junto à flor, mas mais longe dela do que nunca, porque o seu coração estava em sonhos de vôos e nos risos de outros tempos.

Segundo: A flor, na verdade, era uma borboleta que uma bruxa má havia enfeitiçado e condenado a ficar fincada no chão. O feitiço só se quebraria no dia em que ela fosse capaz de dizer não à sua inveja e ao seu ciúme, e se sentisse feliz com a felicidade dos outros. E aconteceu que um dia, vendo a pipa voar, ela se esqueceu de si mesma por um instante e ficou feliz ao ver a felicidade da pipa. Quando isso aconteceu, o feitiço se quebrou, e ela voou, agora como borboleta, para o alto, e os dois, pipa e borboleta, puderam brincar juntos…

Terceiro: a pipa percebeu que havia mais alegria na liberdade de antigamente que nos abraços da flor. Porque aqueles eram abraços que amarravam. E assim, num dia de grande ventania, e se valendo de uma distração da flor, arrebentou a linha, e foi em busca de uma outra mão que ficasse feliz vendo-a voar nas alturas.

Rubem Alves

Fonte

Norma Emiliano

Comments

  • Maria Luiza Monteiro
    Responder

    É uma história de amor mas a escolha do final é motivo para muita meditação, Norma Emiliano.

  • Toninho
    Responder

    Olá Norma, não sabia que já estava de volta com esta bela analogia e reflexão ilustrada por este grande Rubem.
    É assim numa relação se impera o egoismo, o ciumes que tudo ceifa e desagrega. Libertar para voar e ser feliz é uma meta de todos ainda que a linha muitas vezes não se rompa. Numa canção de Buarque ele diz, que o seu amor ame-o e o deixe ser o que ele é. Será que é difícil saber e ver a felicidade do outro?
    O ciume há que ser moderado ou vira uma tortura onde o torturador se sente torturado, ninguém é feliz.
    Muito bom Norma e seja bem vinda ao 2016.
    Uma linda nova semana com paz e alegrias.
    Vamos em mais uma viagem rumo a estação 366 vivendo cada estação por vez.
    Meu carinhoso abraço com minha admiração e beijo de paz.

  • Fabiana
    Responder

    Te encontrei no blog da Marilene e achei interessante o nome do teu blog! Vim visitar e vejo de entrada, um post citando Rubem Alves! Adoro esse homem, acho que vou encontrar sempre boas leituras por aqui! Voltarei sempre!
    Até mais! Abraços! 🙂

  • marilene duarte
    Responder

    Não há relação saudável permeada por inveja e ciume. O que era belo forma correntes e vazios. O amor precisa de liberdade , ou a “vítima” dele buscará outros caminhos. bjs.

  • Ailime
    Responder

    Boa noite Norma, adorei esta historia da qual se podem colher algumas ilações.
    Ou escolhemos ser felizes dando liberdade ao outro ou infernizamos as nossas vidas olhando o outro com invejas e ciúme.
    Eu escolho a primeira opção.
    As relações não são fáceis, mas há que ser permeável e condescendente.
    Um beijinho.
    Ailime

  • Maria Luiza
    Responder

    Olá Norma
    Passei aqui para lhe contar que li seu texto, acho que o último,que você postou lá no facebook. E dizer que ele me inspirou para postar la no meu blog ontem, 26- 01-2016.
    E escolhi esta sua postagem, a qual já havia lido, para novamente comentar sobre este texto , dizendo que escolhi a primeira opção.
    Beijos.
    Maria Luiza (Lulú)

Grata por sua visita sempre bem-vinda.

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